Este texto é acerca do significado laico de ser católico. Eu fui inspirado ao escrevê-lo pelo baptizado recente de um dos meus netos - o T. - e também por um texto do Papa Bento XVI, que lera uns dias antes, e onde ele se referia ao assunto (
aqui, espec. os últimos parágrafos). Em particular, o Papa punha a questão protestante (a questão, como veremos, releva verdadeiramente da cultura protestante) de saber se devemos ser nós - a comunidade - a baptizar uma criança ou se, pelo, contrário, devemos aguardar que ela atinja a maioridade para ser ela a escolher a igreja - se alguma -, em que quer ser baptizada.
Em defesa da tradição católica de que nós não temos de consultar a criança para a baptizar, eu fiquei particularmente impressionado com uma observação do Papa - tão realista, tão evidente, tão mesmo debaixo dos olhos que a mim próprio nunca me tinha ocorrido - de que nós também não consultámos a criança para nascer, não lhe perguntámos: "Queres nascer?". As implicações desta observação simples para a ideia moderna de liberdade são consideráveis, mas esse é assunto que tratarei noutra ocasião.
Naquele dia de Julho em que o T. fazia um ano reuniram-se em volta dele os membros da sua comunidade mais próxima - os pais, os padrinhos, os avós, a família alargada, os amigos da família. E até o Joaquim e a I. viajaram do Porto para a Igreja do Estreito de Câmara de Lobos, na Madeira, onde a cerimónia teve lugar.
Nos momentos que precederam a cerimónia, o T. estava a dormir nos braços de uma das avós. E foi só quando a mãe pegou nele para o aproximar do padre e da pia baptismal é que o T. despertou. Quando o padre proferiu as orações e lhe deitou a água benta sobre a cabeça, o T. estava estremunhado, um pouco assustado até com tanta gente à volta, e literalmente não fazia a mais remota ideia do que estava ali a fazer.
E nós, a comunidade próxima do T. - os pais, eu próprio, o Joaquim e a I. - o que é que estávamos ali a fazer? Estaríamos a cometer alguma violência sobre o T., a restringir de algum modo a sua liberdade de escolha? E se ele um dia decidir ser luterano, ou budista, ou mesmo ateu, que resposta teremos para lhe dar, nós que, sem o consentimento dele, estávamos ali a baptizá-lo católico?
É aqui que surge a observação do Papa de que também ninguém procurou o consentimento do T. para ele nascer. O Papa prossegue depois para dar o significado do baptismo católico numa perspectiva que é estritamente teológica. Não estou certo que esta explicação apele a muitos leitores. Por isso, é também aqui que eu me proponho seguir um caminho paralelo, fornecendo o significado laico de tal baptismo.
Aquilo que nós fizemos ao T. naquele dia na Igreja do Estreito de Câmara de Lobos foi inscrevê-lo na Comunidade Universal (literalmente, o significado de Igreja Católica). Eu não resisto aqui a utilizar o grafismo da matemática dos conjuntos para tornar mais clara a ideia. Aquilo que fizemos foi inscrevê-lo no conjunto U - o conjunto universal. Não existe outro mais lato. Não restrinjinos em nada o T. Pelo contrário, oferecemos-lhe o mundo. A partir daquele momento o T. é um cidadão do mundo, tudo aquilo que existe no mundo também é dele, e ele pode ser tudo aquilo que quiser no mundo.
E, pela nossa presença, nós estávamos a assumir a responsabilidade de fazer tudo aquilo que está ao nosso alcance para que o T. possa ser aquilo que quiser ser no mundo. Na realidade, o horizonte lhe demos é ainda mais vasto, porque nós não o inscrevemos numa Comunidade Mundial, inscrevêmo-lo numa Comunidade Universal (mais uma vez, o significado literal de Igreja Católica). Se um dia fôr possível viver em Marte e o T. quiser ir para lá viver, é nossa resposabilidade fazer tudo aquilo que está ao nosso alcance para que o T. se torne marciano.
O oposto de católico é sectário. E, na realidade, as igrejas que emergiram do protestantismo (luteranas, calvinistas, etc.) definem-se, em primeiro lugar, por serem anti-católicas, quer dizer, sectárias. Nós não temos que consultar uma criança para a inscrever na Comunidade Universal (Igreja Católica), mas já a devemos consultar para a inscrever, por exemplo, numa Igreja Luterana (conjunto A, na figura). Porque a Igreja Luterana, ou qualquer outra Igreja não universal, restringe-lhe as opções de vida. Restringe-a a uma cultura e a uma comunidade que é fechada e exclusiva, e que se define precisamente pela sua oposição à Comunidade Universal (Igreja Católica). Estamos a increvê-la numa seita, estamos a restringir indevidamente a sua liberdade.
É por isso que a questão de saber se devemos ou não obter o consentimento de uma pessoa antes de a baptizar é uma questão que surgiu na cultura protestante e que faz todo o sentido nessa cultura. Mas não na cultura católica. Ao T., naquele dia na Madeira, nós oferecemos-lhe todas as oportunidades que o mundo (na realidade, o universo) tem para lhe oferecer. Se um dia ele quiser restringir esse conjunto, tornando-se luterano, judeu, ateu, ou um monge tibetano, socialista ou liberal à moda britânica, eu vou encolher os ombros. Vou achar mal porque ele está a restringir as suas próprias opções de vida. Mas, ainda assim, vou fazer o que me fôr possível para que ele seja o que quer ser. Foi essa a responsabilidade que assumi com a minha presença no seu baptismo católico.