21 fevereiro 2007

«um homem de génio»

Não consta que o Doutor António de Oliveira Salazar tenha alguma vez apanhado uma bebedeira ou, sequer, ficado ligeiramente «tocado» num acontecimento social. Também parece que não era dado a festividades nem a eventos mundanos. Não fumava substâncias lícitas ou ilícitas, proibiu o absinto e não consentiu que se vendesse «Coca-Cola» no Continente. Não se casou nem teve filhos, porque estava «casado com a Pátria», cujas exigências monogâmicas não permitiam qualquer transigência. As namoradas que, segundo reza a lenda, ia arranjando, tinham que se disfarçar de jornalistas, primas, afilhadas ou colaboradoras, não fossem esses devaneios freudianos manchar a gravitas da sua imagem. Não viajava ao estrangeiro, não conhecia mundo, nem comprou caramelos da única vez que foi a Badajoz. Falava sempre no mesmo tom monocórdico, nunca se exaltava, e jamais desceu ao mundo dos comuns ao longo dos seus quarenta anos de poder pessoal absoluto. Nunca debateu politicamente com ninguém, e sempre manifestou um enfado imenso pela sua «missão», que o levava a garantir que estava permanentemente de viagem aviada para Santa Comba Dão, onde, com a preciosa ajuda da Senhora Dª Maria, cuidaria do quintal e das couves, em vez de tomar conta da pátria e de todos nós. Quando receosamente e sob observação dos tutores do regime, Marcelo Caetano o substituiu, vincou no discurso de posse que ele era apenas homem comum, um simples mortal com o fardo imenso de suceder a um «homem de génio».
Viver toda uma vida sob esta monotonia, sem possibilidade de contestação ou a esperança de substituição, há-de ter sido um martírio. De facto, a oposição ao regime de Salazar era, pelo menos a partir do momento em que se percebeu que o ditador apenas estava obcecado consigo mesmo, uma questão de princípio, de inteligência e de honestidade. O facto de muito poucos se lhe terem oposto e do país o ter suportado reverentemente durante quarenta anos, diz mais sobre o povo que somos do que qualquer outra análise histórica e política.

saudades de salazar?

António de Oliveira Salazar pode ter sido um bom economista, ter evitado a nossa entrada na 2ª guerra mundial, equilibrado as finanças públicas, e recusado a barbárie intolerável dos fascismos, deixando-se ficar por uma hipócrita autocracia ditatorial à portuguesa. Admito, mesmo, que se tem vivido noutro século da nossa História, talvez pairasse sobre ele um consenso universal, como sucede com Pombal e com muitos outros tiranetes que pululam pelos nossos embasbacados compêndios.
Sucede, porém, que António de Oliveira Salazar viveu e governou do século XX, e o país que nos deixou, ao fim de quarenta longos anos de poder pessoal absoluto, revelam-no como uma figura histórica menor, que não soube sair a tempo, nem encontrar soluções que viabilizassem, após o seu imenso reinado, o país.
Visitei, há pouco tempo, Moçambique pela primeira vez. Duvido que alguém que já o tenha feito depois do 25 de Abril possa ter grande respeito histórico por Salazar. Na verdade, foi ele o grande culpado da desgraça que sucedeu àquelas gentes e àqueles territórios, ao limitar-se a fazer o que, aparentemente mais difícil, era, no fim de contas, mais fácil: combater pelas armas o que era, apenas e só, uma questão política que não soube resolver nos quarenta anos de poder pessoal de que dispôs.
Salazar não foi capaz de ler as lições do seu tempo, nem de interpretar devidamente a evolução do mundo em que viveu. Foi teimoso e persistente no erro. Não quis ouvir ninguém para além de si mesmo.
A História tratou de lhe negar razão, a ele que nem sequer cuidou, ao contrário de Franco, de encontrar um sistema que permitisse que o país sobrevivesse à sua morte. Não temos, por isso, grandes razões para lhe estarmos gratos.

direito, legislação e liberdade

A questão dos limites morais da acção humana, suscitada pelo comentário/«post» do Prof. José Manuel Moreira, é uma das mais importantes e antigas do pensamento liberal.
Os clássicos diriam que a liberdade individual termina onde começa a dos outros indivíduos. Alguns autores acrescentariam que, numa sociedade livre, os indivíduos estabelecem contratualmente os seus interesses recíprocos, ficando ao seu critério o princípio e o fim dos mesmos. Outros reforçariam esta ideia com a da existência de uma ordem social espontânea, portadora, em si mesma, de valores e princípios morais, que os indivíduos vão lentamente compondo em sociedade.
A questão deve ser posta actualmente de outro modo, e está em saber até onde deve ir o direito legislado pelo Estado para defender essa «ordem moral social», ultimamente corporizada pelo equívoco «interesse público»: deve reproduzir as normas espontâneas da ordem social, deve garantir a completa liberdade contratual, ou deverá decidir moralmente pelos indivíduos? Em minha opinião, este é o principal problema com que os liberais se devem actualmente confrontar, ao qual devem tentar dar uma resposta coerente.

o estado virtuoso

Vasco Pulido Valente informa-nos, na sua habitual crónica das sextas-feiras do Público, que Paulo Portas e António Lobo Xavier se apressaram a exigir, na própria noite do referendo, que a futura lei do aborto o remetesse em exclusivo para o Estado e para o SNS, impedindo a sua prática nas clínicas privadas. O fundamento da proposta residirá na natureza lucrativa da actividade destas últimas, o que as levaria, ao contrário do sector público que não visa o lucro, a acelerar a realização de abortos, em vez de aconselhar as mulheres a não interromper a gravidez.
O raciocínio é absurdo e facilmente desmontável, pelo menos para quem não tiver uma mentalidade socialista. Não vou, contudo, por aí, porque a atitude não surpreende. O que mais importa é, por ora, registar que a nossa direita, a que se prepara para voltar à ribalta política, continua a desconfiar da iniciativa privada e a considerar o lucro como a origem de todos os males sociais, preferindo-lhe o Estado como garante da virtude social. É caso para dizer que, infelizmente, à direita, nada de novo.

uma hipótese

Os sábios portugueses andam apoquentados com o súbito aumento do desemprego, que confessam não serem capazes de explicar. Antes que surjam as habituais explicações «macro» e as receitas do costume, o que deve começar a suceder nos jornais do fim-de-semana, aqui vai uma hipótese de trabalho: as finanças públicas continuarem a asfixiar a economia privada. Pensem nisto.

cartilha liberal

Em resposta a um desafio do Luís Lavoura (raramente resisto aos desafios do Luís Lavoura) e de outros leitores, aqui segue uma sucinta cartilha liberal de liberdades fundamentais:
- liberdade religiosa, porque estabelece (ou não) uma relação entre um indivíduo e o sagrado;
- liberdade de opinião, porque depende exclusivamente do modo como um cidadão vê a cidade e o mundo que o rodeia;
- liberdade de participação política, porque a «res publica» é pertença de todos os indivíduos que a compõem e não apenas de alguns;
- liberdade sexual, porque dispõe exclusivamente do corpo de quem a determina;
- liberdade desportiva, porque a bola é redonda e são onze de cada lado.

a re-refundação

A acreditar no que tem dito a maioria dos comentadores, parece que o resultado do referendo provocou um «terramoto» na direita portuguesa do qual resultará a sua verdadeira refundação. Algo de muito parecido, diga-se, com o sucedido após as últimas eleições legislativas e a primeira maioria absoluta do PS. Bem vistas as coisas, quem espera sempre alcança. Afinal, valeu a pena esperar. Sentado.

efeitos secundários do referendo

Imaginar que o referendo do aborto possa fracturar os liberais portugueses, ao ponto de os dividir inexoravelmente em duas, três ou mais linhas inconciliáveis, é desconhecer por completo a essência e a ética do liberalismo. Se há algum dogma intransponível para os liberais, a liberdade de consciência individual será seguramente o primeiro de todos. Ora, o aborto é, por excelência, uma escolha que depende, em primeira instância, da consciência de cada um, antes de depender de qualquer juízo legal ou moral. Por isso, poderão os liberais portugueses vir a fraccionar-se em razão de muitos outros assuntos. Se o fizerem por esse motivo, é porque provavelmente têm da liberdade uma ideia falseada.

1834

«Os desenvolvimentos dos últimos meses apontam para o aparecimento de duas facções incompatíveis entre os poucos liberais portugueses.», escreve o leitor Mário, em comentário a um «post» pintasilguico do CAA. Não sei se é ou não assim, já que não tenho dotes para perscrutar o futuro. Mas, como conheço alguma coisa do passado, não me espantaria que tivesse razão. Na verdade, no país do aborto em que o aborto é o país, nada é de admirar. A ver vamos.

o estado da nossa democracia

O «Forum TSF» de hoje tratou dos limites à liberdade de expressão dos ministros dos cultos religiosos (sobretudo da Igreja Católica) e dos ministros do governo português, ao que parece consagrados numa muito sensata lei do referendo ao aborto.
Subjacente a essa decisão do legislador está, como é óbvio, uma íntima convicção da estrutural estupidez do povo português que, coitadinho, se deixa influenciar pela «padralhada» nas missas a que se desloca de livre e espontânea vontade (embora, reconheçamos, muito influenciado pela falta de laicização que ainda vigora na sociedade portuguesa, pela qual é responsável a sinistra ICAR), e pelos senhores ministros nos actos das inaugurações das estradas e nas almoçaradas festivas a que a «populaça» vai matar a fome.
A liberdade de expressão é, no nosso Portugal democrático, um princípio sacrossanto, ainda que a sua aplicação possa ser fiscalizada pelo legislador, a bem da pureza e da ingenuidade do povo, e da virgindade democrática da Nação.
A propósito, e já que falamos de programas da nossa comunicação social: alguém sabe informar em que lugar vai o nosso Doutor António, nesse fantástico concurso da RTP, que é os «Grandes Portugueses»?

coisas humanas

Do animado «Prós e Contras» de ontem saíram duas novidades com interesse: uma nova categoria biológica enunciada pela talentosa escritora Lídia Jorge, a «coisa humana» que vive no útero das mulheres até às dez semanas de gravidez, e um aviso sério de Vital Moreira, feito aos dois partidos centrais do nosso regime, para que digam aos portugueses como irão regulamentar, se estiverem no poder, a autorização legislativa que a vitória do «sim» representará. A isto acrescentou que acharia «muito mal» se o não fizerem até ao dia do referendo. Inquirido pela entrevistadora sobre as razões dessa opinião, esquivou-se a responder. Porquê? Pela simples razão de que essas explicações, sobretudo da parte do governo em exercício de funções, podem fazer toda a diferença e decidir o sentido de voto de milhares de cidadãos. Como é por demais evidente.

o valor negativo da democracia

Muitos dos comentários feitos a este meu «post» sobre as minhas opções de voto no referendo do próximo dia 11, vão no sentido de acharem impossível que eu consiga votar nas eleições portuguesas (legislativas, autárquicas e presidenciais), presumindo-se que por óbvia falta de informação sobre o que, de facto, uma vez eleitos, os políticos farão com o meu (nosso) voto (s).
O argumento diminui mais a democracia portuguesa, do que exactamente as minhas escolhas eleitorais. De facto, as pessoas habituaram-se a comer «gato por lebre», e já acham natural que os políticos não cumpram minimamente o que lhes prometeram. Os exemplos não faltam, desde o célebre «choque fiscal» de Durão Barroso, ao mais recente «read my lips» do Engº Sócrates.
Ao nível a que chegou a nossa «democracia representativa», o voto passou a ser mais um exercício de castigo político para afastar quem governa por governar mal, do que uma escolha de um projecto alternativo. Pelo menos, por enquanto, podemos usar o nosso voto para destituirmos pacificamente os nossos governantes. É aquilo aque chamo «o valor negativo da democracia». É mau, mas podia ser bem pior. Só é pena que as pessoas se conformem apenas com isso.

aborto: a minha declaração de voto

1. O meu voto no referendo do aborto não me pertence. Entregá-lo-ei a quem me disser o que fará dele, caso concorde com o destino que lhe será dado. Lamentavelmente, até agora, só obtive explicações claras por parte do «não»: ficará tudo na mesma. Da parte do «sim», só a ideia da despenalização, quando, como é sabido, essa alteração poderá ser feita de várias maneiras e comportar diferentes consequências, nem todas elas, a meu ver, aceitáveis.

2. Devo dizer que sempre me inclinei para votar «sim». Por várias razões que fui, ao longo dos últimos meses, aqui expondo: parece-me que o aborto é, só pode ser, um problema de consciência individual, e que esta só pode manifestar-se sem ameaças legais; acredito que a lei em vigor mantém uma situação de hipocrisia social, porquanto o aborto é uma prática corrente na nossa sociedade, que só ocasionalmente, muito à portuguesa, é casuisticamente aplicada para servir de exemplo; porque conheço muitas raparigas e mulheres que já o fizeram, que sofreram e sofrem com isso, a quem jamais consideraria a hipótese de as castigar com uma sanção penal, ou propor que o Estado as investigasse. Sobre essa sanção, há que dizer que não colhe o argumento falacioso, diria mesmo hipócrita, utilizado pelos partidários do «não» de que a lei não se aplica e que nenhuma mulher está presa por ter abortado. Se esse é um argumento benévolo, mais o será então a revogação da lei. Todos sabemos, contudo, que não é isso que se pretende, antes se quer manter em vigor a ameaça da sanção, como forma de pressão psicológica e social. Ameaça imprópria, como todas as ameaças, de uma sociedade civilizada, diga-se.

3. O pior é que, para quem está inclinado a votar «sim», não existe um único «sim», desde logo porque o tratamento que lhe for dado por via legislativa e por decisão governamental poderá ser imensamente diferente. Eu passo a explicar.
Existem, pelo menos, dois tipos de «sim»: o «sim» À despenalização por se considerar o aborto um último recurso, assumido em estado de desespero consciente; e o «sim» como um simples direito fundamental da mulher ao seu corpo, exercido a expensas do Estado. Concordo com o primeiro, discordo do segundo, pelas razões que se seguem.

4. A primeira delas, é a de que o problema científico e filosófico de se saber se a mulher, pelo acto do aborto, está a dispor apenas de si, ou também da vida de outro, é praticamente insolúvel. Existem posições científicas, filosóficas e morais para sustentar uma e outra posição. Por conseguinte, nenhuma delas, por inconclusivas, ambíguas e reciprocamente refutáveis, deverá servir de fundamento a uma decisão legislativa sobre esta matéria.

5. A segunda, vai no sentido de considerar que o aborto só deve ser moral e legalmente suportável se se tratar de uma decisão livre e consciente da única pessoa que poderá, em última instância, efectivamente decidir: a grávida. Mas, para o poder ser, o Estado não poderá criar um sistema de desresponsabilização absoluta que transforme o aborto numa prática tão fácil e acessível como curar uma dor de cabeça ou uma constipação. Razão pela qual sugeri, ao longo das últimas semanas, que seria um erro incluir o aborto no SNS como acto médico gratuito. Este argumento, que o raciocínio básico do «sim» imediatamente qualificou como um «argumento económico», logo, desprezível, é mais de natureza moral e responsabilizadora, do que propriamente economicista (ainda que se o fosse não estaria a cometer qualquer incorrecção). Felizmente, o Dr. Mário Sousa, uma autoridade nesta e noutras matérias, adepto do «sim», deu-me razão.

6. Em terceiro lugar, considero de muito mau agouro que o governo nada tenha dito sobre a proposta da Drª Maria de Belém Roseira, sobre a criação de mecanismos de reflexão e de responsabilização para quem quiser abortar a expensas do Estado. É grave que um governo e um ministro da saúde tão envolvidos na campanha tenham ignorado essa proposta, que retiraria até ao «não» o seu principal argumento: o de pretenderem diminuir a efectiva prática do aborto, como evidentemente se concluirá de um sistema que aconselha, sugere alternativas e apoia quem está em dúvida. Por que motivo o governo não respondeu a uma interpelação de uma distinta militante e dirigente do partido que o apoia? Infelizmente, temo o pior: por pretender mesmo consagrar legalmente uma interrupção da gravidez irresponsável e sem qualquer acompanhamento médico, que não seja o do acto em si.

7. É, pois, necessário perceber que não existe apenas um «sim» e que as consequências da despenalização não são todas iguais: umas são aceitáveis, outras não o são É pena, diga-se de passagem, que os adeptos do «sim», num aggiornamento militante e pouco racional, não tenham querido explicar as consequências das suas eventuais diferenças, em vez de se terem agrupado em molhe numa argumentação de simples contraditório e de argumentos reflexivos pavlovianos («Oiço falar em penalização e em mulheres na cadeia, voto logo «sim»»). Perderam com isso e poderão bem vir a perder por isso.

8. Um liberal só dá o seu voto ao poder soberano em troca de explicações claras sobre o que este fará com ele. No caso do referendo do aborto, é uma falácia dos adeptos do «sim» dizer-se que vamos votar apenas a despenalização do acto até às 10 semanas. Não, não é verdade. Vamos votar, de facto, a despenalização, mas vamos autorizar um governo a regulamentar a prática do aborto. Sobre essa regulamentação, até agora o governo não disse nada. Em contrapartida, há dirigentes do PS a dizerem coisas completamente opostas, como a Drª Maria de Belém Roseira, com a qual concordo, e a Drª Edite Estrela, que já propôs que a futura legislação despenalizasse, de facto, o aborto para além das 10 semanas. Em que é que ficamos? O que fará este governo, e não os vindouros de direita ou de esquerda, mas este governo que decidirá a partir do dia 12 de Fevereiro, com o meu voto? Sem esse esclarecimento, não se poderá votar em algo que se desconhece. Porque, como dizem os liberais, só se troca alguma coisa por outra melhor. Quando, pura e simplesmente, se desconhece uma das duas alternativas possíveis, não se pode, por definição, escolher.

9. Em conclusão, direi que o meu voto (e julgo que o de muitos milhares de portugueses) continua disponível, e que se decidirá nos seguintes termos:
- Votarei «sim», se ouvir do governo português, que será quem vai ter a responsabilidade de regulamentar a decisão do referendo, uma atitude séria e consciente, que não transforme o aborto num acto irresponsável. Por outras palavras, votarei sim, caso o governo anuncie que acolherá a proposta da Drª Maria de Belém Roseira, ou outra que se lhe equivalha;
- Votarei não, se o governo português não esclarecer claramente que destino pretende dar ao meu voto.

10. Até ao dia 11 de Fevereiro continuarei, pacientemente, a aguardar que me esclareçam.

direito de propriedade

A crise permanente em que vive o CDS resulta de um erro de avaliação da quase totalidade dos seus protagonistas: o partido, que se reclama da democracia-cristã, não é o mesmo que foi fundado pelo MFA, por Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa, nos idos de 1974. Se é que este alguma vez existiu, ou se foi alguma coisa mais do que uma muleta, primeiro, para a revolução, e, depois, para o PSD chegar ao governo, esse partido extinguiu-se com a acção do Dr. Portas: primeiro na criação de um caldo de cultura anti-cavaquista n? O Independente (a que o Dr. Cavaco da altura, convenha-se, deu uma preciosa ajuda...); depois com o balão de ensaio que foi o PP com Manuel Monteiro; por fim com a sua mais do que óbvia entronização na liderança do partido. O Dr. Monteiro não percebeu isto, o Dr. Castro também não parece estar a entender. Já o Prof. Freitas percebeu-o tão bem, que imediatamente se desfiliou do partido sob a alegação de que «não era o que fundara». Por isso, quando o Dr. Portas quiser regressar, o que parece estar para breve, ao partido que é o seu, construído por si e com a sua gente, à sua imagem e semelhança, fá-lo-á sem dificuldade. Com ou sem utilidade, isso logo se verá.

o fim da história

Parece que a política desapareceu em Portugal. Ou melhor, que terá sido substituída pela problemática do aborto. As ideologias desapareceram, os partidos eclipsaram-se, as forças sociais sucumbiram-lhe. Só existem o «sim» e o «não». Em Portugal, nos últimos tempos, a escolha é essa, e quem não for por um ou por outro não é certamente bom chefe de família. Os alcunhados «nins» são párias políticos e sociais, gente desprezível, comparada aos colaboracionistas de todos os «reich» e de todos os «antigos regimes». Gente do pior, sem coluna vertebral e de frouxo carácter. Quem se limita a não pensar no assunto, ou a não querer que lhe falem dele, não existe para a cidade. São res nulius, os metecos, os plebeus sem cidadania.
Em tempos de sonolência e de maioria absoluta, uma pequena guerra civil fazia-nos falta. Depois do dia 11, com tudo a ficar mais ou menos igual ao que era antes, o país vai sentir falta de adrenalina e terá de voltar-se para outro lado qualquer.

uma proposta muito sensata

No meio do alarido em que se envolveram os militantes do «sim» e do «não», passou praticamente desapercebida uma proposta sensata de Maria de Belém Roseira, que poderá ajudar alguns indecisos a tomarem uma decisão e alguns dos que já o fizeram a sustentarem melhor a sua.
Não se trata propriamente de uma originalidade, mas da sugestão da adopção do modelo alemão na futura legislação portuguesa sobre o aborto, no caso do «sim» vencer. O aspecto essencial desta proposta está na criação legal de um «período de aconselhamento obrigatório» da responsabilidade de um médico, seguido de um período de reflexão mínimo de três dias da mulher que quer abortar. Ora, considerando que muitos abortos que por aí se fazem se devem à imaturidade das grávidas, sobretudo das mais jovens, à falta de alguém com quem se possam aconselhar, à violenta pressão psicológica a que frequentemente são expostas pelo namorado/companheiro, à falta de informação sobre alternativas, nomeadamente a adopção (que necessitaria de ser legalmente agilizada e desburocratizada), em suma, ao isolamento próprio destas situações, a existência de alguém que pudesse quebrar esse isolamento e sugerir outras alternativas ao aborto, poderá contribuir para uma decisão que não seja a que é aparentemente mais fácil, e diminuir, de facto, os números do aborto em Portugal. Naturalmente, que isto só poderá ocorrer num quadro de despenalização do acto, sem o que ninguém se atreverá a confessar a outrem a sua intenção de praticar um acto ilícito que a pode levar à cadeia.
Sugiro, portanto, que os adeptos do «sim» questionem o governo, concretamente, o senhor Ministro Correia de Campos, sempre tão lesto a apresentar projectos nesta matéria, no sentido de saber se pretendem ou não adoptar esta medida no caso do «sim» ganhar. Ela seria, de resto, uma das poucas justificações plausíveis para tornar razoável a integração do aborto no SNS, e para se dizer que a vitória do «sim» não corresponderá à consagração do aborto a pedido.

o aborto black & white

A campanha do referendo do aborto entrou decididamente na rampa final, onde, ao que parece, prevalecerá a chicana ideológica e político-partidária. Lamentavelmente, como está à vista de qualquer um, os «argumentos», de um lado e do outro, versam invariavelmente sobre o «outro lado», o «inimigo», roçando frequentemente o insulto pessoal e a irracionalidade, em vez de aproveitarem a circunstância (e, já agora, os subsídios públicos) para se explicarem e para explicarem o que será votado no próximo dia 11.
No meio deste entrincheiramento de posições entre o «sim» e o «não», deste maniqueísmo básico, encontra-se uma multidão de indecisos, que ambas as partes parecem temer, e que um lado e outro se tem esforçado para convencer, à paulada, da bondade das suas razões. Qualquer dúvida, qualquer reserva, qualquer juízo crítico é visto como um ataque do lado contrário. O que interessa é ser-se assumidamente pelo «sim» ou pelo «não», com clareza, embora quase sempre com muito pouca racionalidade.
Eu não vejo nisto qualquer vantagem para um debate esclarecido ou para a solução do sério problema que o aborto é em Portugal e nas sociedades modernas. Menos ainda para as principais vítimas do sistema vigente, a saber, as mulheres, que uns e outros dizem querer ajudar. Infelizmente, parece que a lição de 1998 não foi devidamente assimilada, e que os intervenientes não se aperceberam que este é um problema sério a exigir seriedade, e não animadas disputas entre os «partidos» de um e outro lado. Bem pode pregar o Dr. Vitorino sobre as causas da derrota do «sim» em 1998, que ninguém lhe dá ouvidos: se repararmos, entre esta campanha e a anterior as diferenças são praticamente inexistentes. E os resultados, ou muito me engano, acabarão por ser iguais.

P.S.: Aqui segue o link do blogue «Eu Voto Sim», indicado pelo Luís Lavoura, onde parece estar a decorrer um debate interessante promovido pelos adeplos do «sim».

19 fevereiro 2007

associações cívicas

No «Forum TSF» de hoje, Manuel João Ramos, Presidente da ACA-M, pôs o dedo na ferida sobre as associações cívicas e de cidadania do nosso país: estão todas, ou quase, penduradas no Estado, à espera de um subsidiozinho, de uma sede, de equipamentos, enfim, de uma sinecura qualquer. Por isso, diz, não é de espantar que estas «associações cívicas» não protestem, não reclamem, não desempenhem o papel que delas é esperado. A estatização da vida portuguesa está por todo o lado e subverte tudo em seu benefício, até mesmo as pessoas e as suas organizações vocacionadas para controlar o Estado. Foi isto, sem tirar nem pôr, que Manuel João Ramos nos disse. Infelizmente, tem toda a razão.

P.S.: É de salientar que a ACA-M, como referiu o seu Presidente e é, de resto, do domínio público, não depende em nada do Estado. E, muito provavelmente, a haver uma associação que o merecesse, não repugnaria que fosse a ACA-M. Preferem, contudo, manter-se assim e assim manterem a sua independência. Parabéns.