20 junho 2006

«paz e guerra entre as nações»

O Carlos Novais decretou que os liberais que simpatizam com a política externa intervencionista dos EUA não são nem liberais nem de direita. Vai daí e, na sequência dessa fatwa com que me remeteu para as fileiras do Bloco de Esquerda, levantou várias questões a merecerem atenção: uma sobre o pretenso «governo mundial» que resultaria da hegemonia americana; outra sobre os fundamentos possíveis da «Guerra Justa» entre Estados.
Sobre estes trepidantes assuntos, começaria por dizer que me parece que o Carlos Novais procura explicações morais e éticas para factos. Ora, estes últimos vivem por si mesmos, independentemente desses possíveis fundamentos, muitas vezes para além ou até mesmo contra eles. Há muito tempo que se discute se Maquiavel era ou não maquiavélico; se ele se preocupava em descrever o que perscrutava que fosse a realidade, ou se opinava acerca do que gostaria que ela pudesse ser.
A realidade, porém, vive para além das intenções ? boas ou más ? dos seus protagonistas e intérpretes. Quando os liberais, entre eles Hayek, asseguram que os factos são mais o resultado dos nossos actos do que das nossas intenções é, em parte, isto que pretendem dizer. Quando os liberais sugerem que o governo deve ser, por razões de princípio e de método, sempre muito limitado, independentemente de quem o protagoniza, é por quererem precaver-se da realidade do ser, sabendo que ela implacavelmente se sobrepõe ao dever ser. Quando os liberais afirmam que é da natureza do poder corromper quem o exerce (ideia mais ou menos actualizada pela metáfora do «anel do poder» de Tolkien e da necessidade de o evitar a todo o custo) é para, em seguida, proporem a sua limitação objectiva e independente dos seus titulares, das suas intenções declaradas ou escondidas. Numa palavra, o individualismo metodológico liberal é a garantia mínima de um poder político soberano tolerável.
Sobre a realidade da comunidade internacional, tanto quanto julgo saber, não terá perdido actualidade aquela máxima marxiana de Bertrand de Jouvenel (um liberal francês, coisa rara e cuja existência, mesmo com Jouvenel e Tocqueville, ainda está por provar) de que «a História é luta de poderes». Para todos os efeitos, julgue-se ou não o homem como um liberal de direita, a verdade é que ele não estaria longe da razão. Reportando-nos somente às tentativas melhor ou pior sucedidas de hegemonia mundial (do mundo, então, conhecido) são de citar o Império Romano, o expansionismo muçulmano, a Respublica Christiana e o Imperium Mundii teocêntrico medieval, as pretensões europeias da França e da Inglaterra, o Império Português e o Tratado de Tordesilhas, Carlos V, Bonaparte, a Santa Aliança, os II e III Reich, o Império Soviético e, claro, o ?isolacionismo? dos EUA, ou seja, a Doutrina Monroe obviamente revisitada por Wilson, F. D. Roosevelt, Truman, Nixon, Reagan, Bush I e II.
Isto nada tem a ver, diga-se, com qualquer ideia de governo mundial. Tais utopias são, por natureza, avessas à realidade. Surgem, de tempos a tempos, nalgumas cabeças bem intencionadas e em meia dúzia de folhetos, grande parte mal redigidos. A hipótese de uma autoridade mundial que nos governasse a todos é, obviamente, uma impossibilidade metafísica. Nenhum liberal poderá acreditar nisso, sob pena de absolver o intervencionismo e a planificação. Do que falamos é numa ordem mundial pautada por princípios e regras comuns, isto é, por um código de valores essenciais a qualquer ideia de liberdade.
Liberal como sou, não admito o relativismo político, embora aceite o princípio de que as comunidades humanas devem livremente escolher os valores pelos quais querem guiar momentaneamente a sua existência. Porém, não me custa distinguir entre a liberdade e a opressão, a propriedade e o colectivismo, a livre expressão e a ditadura, o laicismo e o clericalismo político, a livre iniciativa e a planificação, a segurança e a insegurança, a paz e a guerra. Estes, os primeiros de todos estes pares, são valores políticos das sociedades livres (não necessariamente ideologicamente liberais) que existem por si, são objectivos e mensuráveis, e constituem um património que deve ser defendido. Não há aqui lugar a escolhas, nem à expressão democrática de sentimentos. Eu não sou livre de escolher entre "levar" com uma fatwa colectiva iraniana sob a forma nuclear, ou não. Não é matéria sindicável, ou que possa ser submetida a referendo, ainda que se diga, sem faltar à verdade, que o Irão nunca fez deflagrar nenhuma bomba nuclear. É uma opção que não subsiste à mais elementar ideia de liberdade. Se existe algum fundamento de justiça possível para a guerra, a subsistência da espécie, ou de uma comunidade, poderá ser o mais expressivo. Essa foi a lição que Churchill nos legou e parece-me que ainda hoje não está desprovida de actualidade.
Pergunta o Carlos Novais quem, então, pode exercer a faculdade de decidir sobre a paz e a guerra na comunidade internacional. A resposta é, como vimos, goste-se ou não, tão velha como o mundo: quem detém o poder. Tão simples quanto isto. Hoje, os EUA, ainda há bem pouco tempo, em larga parte do mundo, a URSS. Amanhã não sabemos. A sociedade internacional é, para todos os efeitos, um mercado livre e não intervencionado, onde a oferta e a procura se ajustam, sem que uma autoridade monopolista as consiga condicionar. Olhe-se para a SDN e para a ONU e retirem-se conclusões.
Quando Reagan chamava à URSS o «Império do Mal» para justificar a sua política externa de intervenção, era uma escolha valorativa - de valores morais e políticos - que nos sugeria. É com esta direita liberal que me identifico. Diga o Carlos Novais momento da história se revê, para nos podermos entender.

dias felizes

Não tenho para mim que a Felicidade (com maiúscula) seja uma finalidade alcançável pelo género humano. De resto, parece-me que a nossa própria natureza a contradiz e remete para o plano da utopia. Por mim, que já desisti da ideia de vir a ganhar o euromilhões, creio que os homens estão condenados à sua humanidade e, no limite do optimismo, vão vivendo com algumas alegrias circunstanciais e efémeras do dia-a-dia. Comemorar aniversários (sobretudo os meus) há muito que não me enche de júbilo, ir a casamentos é uma violência física e psicológica, confraternizar com o próximo foi sempre um exercício de elevado risco, principalmente em épocas de crise económica em que ninguém sabe quem vai pagar o jantar. Mesmo no nascimento dos meus dois filhos, acto que invariavelmente provoca o delírio alucinogéneo dos progenitores e respectivos familiares, não posso deixar de confessar que a primeira reacção foi de estranheza perante seres tão estranhos e ruidosos, que nos olham com a mais do que justificada reserva e desconfiança.
Contudo, há ainda dias felizes e hoje tive um desses cada vez mais raros momentos.
Andava eu pelas imediações da Conservatória do Registo Automóvel, a fazer horas a favor da nossa burocracia, quando me toca o telefone e, do outro lado, me dão a notícia: aparecera na Livraria Utopia, um honrado alfarrábio da cidade do Porto, sito à Rua da Regeneração, o livro «O País das Maravilhas», do Vasco Pulido Valente, que eu perseguia, sem exagero e sem sucesso, pelo menos há vinte anos. O livro é uma colecção de crónicas publicadas na imprensa no pós-25 de Abril, e foi editado em 1979. Na minha juventude descuidada e descabelada (característica esta que se agravou com o tempo) o livro passara-me ao largo. Quando, alguns poucos anos mais tarde, dei por ele, já estava esgotado e não se conseguia encontrar em sítio nenhum. Hoje, graças à fantástica Livraria Utopia (nome mais do que apropriado), chegou-me às mãos pela ridícula quantia de € 20,00. Ainda há dias felizes.

soberania

Apenas uma coisa está verdadeiramente em causa na actual crise nuclear do Irão: saber se continuamos a viver num mundo de soberanias estaduais ilimitadas ou não.
Efectivamente, o modelo soberanista sobre o qual se ergueu a sociedade internacional dos Estados assentava, pelo menos desde o século XVI, nos cinco marcos do poder estadual definidos por Jean Bodin (por ironia, o primeiro tratadista da soberania estadual foi, também, um erudito conhecedor da demonologia...). Entre eles, caracterizando a chamada «soberania externa», o direito de fazer a paz e a guerra. Neste particular aspecto, não podia haver transigência possível: só era soberano o Estado que pudesse declarar guerra a um outro, e aquele que não tivesse essa capacidade não era um Estado verdadeiro.
Até à eclosão da I Guerra Mundial, estes assuntos dificilmente ultrapassavam o foro íntimo da vizinhança ou, no máximo, de um espaço regional mais ou menos alargado. O conflito de catorze-dezoito, intencionalmente classificado como a «primeira guerra mundial», fez perceber que o ius belli passara a ser um assunto de todos e não somente das partes directamente envolvidas. A guerra de 1939-45 agravou essa convicção e o mundo bipolar da era soviética transformou-a numa temível certeza.###
O fim da União Soviética originou uma pluralidade incontável de poderes, com capacidade de se tornarem uma ameaça à escala global, sob o manto enganador do monopólio geopolítico americano. Ao contrário do que alguém disse na sequência do desaparecimento do Império Vermelho, o mundo não estava exclusivamente sob a pax americana, como ficara sob a pax romana após a terceira guerra púnica.
O programa nuclear do Irão demonstra-o bem. Não vale a pena repetir aqui os argumentos invocados à exaustão sobre a insegurança, as consequências, os perigos, as ameaças que um tal poder concentrado nas mãos de um Estado clerical e dirigido por gente muito pouco tolerante poderia provocar. Coloquemos o problema de outro modo: devemos continuar a aceitar o princípio bodiniano da soberania absoluta dos Estados, ou, pelo contrário, denunciamo-la como impraticável num mundo onde as consequências dos actos de guerra são ilimitadas?
Neste último caso, há que responder a uma questão: quem determinará os limites do poder externo dos Estados e quem deverá aplicar as sanções preventivas e repressivas pela sua violação? A hipocrisia reinante vira-se para a ONU e para um direito internacional público sedimentado durante a guerra-fria. Mas todos sabemos que só há que aceitar ou enjeitar a hegemonia americana. E isso é, em última análise, o que divide a comunidade internacional no caso do Irão.

europa dos resultados

Barroso quer ultrapassar o impasse europeu decorrente da morte do Tratado Constitucional, com a «Europa dos Resultados», isto é, com mais políticas comunitárias que surtam efeito directo na vida dos cidadãos e gerem optimismo, e com menos questões institucionais, que nada dizem ao cidadão comum.
Obviamente que Barroso, sendo um homem inteligente que, ainda por cima, é Presidente da Comissão Europeia, sabe bem que esta afirmação está ao nível de uma chalaça de café. Desde os primórdios da Europa comunitária que a questão institucional, mormente as formas de decisão no Conselho, foi a mais importante de todas: com a supranacionalidade originária (1951-1965) da Alta Autoridade da CECA, a «crise da cadeira vazia» e o compromisso do Luxemburgo (1965-1966), a introdução do princípio-regra da maioria qualificada no Acto Único Europeu (1986) e o seu alargamento em Maastricht (1992). Desde que, no seguimento da queda do muro de Berlim, ficou definitivamente assente que a União Europeia se alargaria sem limites, todos os tratados de revisão posteriores ? o Tratado de Amesterdão (1997) e o Tratado de Nice (2001) têm por primeira finalidade a resolução da questão institucional, nomeadamente a criação de um sistema decisório que não exija maiorias qualificadas impeditivas do funcionamento a 25, a 27 e por aí em diante, de uma entidade onde o princípio da desconfiança entre as partes é a regra de ouro.
Por conseguinte, não há políticas comunitárias eficazes sem uma estrutura decisória razoavelmente célere. Barroso sabe isso provavelmente como poucos. Daí ser legítimo perguntar por que motivo surge agora com esta verdadeira «sopa de pedra» que seria admitir que a União pudesse ser operacional sem as condições mínimas para esse efeito.

heresias

É bom que não subsistam equívocos: uma coisa é a minha opinião acerca da liberdade de culto e da separação total entre o político e o religioso, pertencendo este último à esfera dos sentimentos e escolhas privadas, e o primeiro às opções públicas e com consequências sobre um número indeterminado de sujeitos, outra bem diferente é a opinião que tenho sobre determinado tipo de cultos e de práticas que lhe estão associadas.
Embora entenda e defenda a plena liberdade de cada um a fazer o que muito bem entender de si e do seu corpo (o que, numa visão ampla como a de Rothbard, poderá provocar algumas surpresas mais desagradáveis - e discutíveis - para os ortodoxos, como a posição sobre o aborto?), há coisas que, ultrapassando determinados limites, só julgo compreensíveis se analisadas do ponto de vista patológico. Contudo e uma vez mais, tratando-se da saúde mental de cada um, não me diz qualquer respeito.
Mas já me apetece dizer alguma coisa sobre as reclamadas práticas de sacrifício doloroso que, ao que julgo saber, alguns membros da (do) Opus Dei utilizam para ascenderem ao sagrado, isto é, a Deus, e que têm vindo a ser aqui, no Blasfémias, ultimamente tão debatidas.###
Independentemente da sua indiscutível liberdade pessoal para o fazerem, não obstante o meu juízo pessoal muito crítico e de censura desses comportamentos (o que, em bom rigor, é absolutamente irrelevante, já que não pertenço, nem aspiro a pertencer, à Obra), o que eles sempre me sugeriram, embora, reforço, os não conheça com precisão, é um imediato paralelismo com as práticas de algumas seitas gnósticas, tradicionalmente consideradas heréticas pela hierarquia católica.
Em boa verdade, o sacrifício físico, que pode ir da estimulação dos sentidos pela dor à própria mortificação, que alguns membros da Opus Dei utilizam como via de ascese a Deus, não deixa de ser uma forma humana, excessivamente humana, de O querer alcançar. Nessa medida, há aqui uma clara inversão da relação tradicional das religiões reveladas do Homem com Deus, que é exactamente a da revelação, e uma atitude do homem para com Deus que habitualmente é considerada como presunçosa (ou mesmo herética) pelas hierarquias. Ora, não terá sido exactamente por terem invertido o canal de comunicação com Deus que as várias gnoses ? dos cátaros, às múltiplas seitas cristãs esotéricas, passando inevitavelmente pela maçonaria tradicional ? foram sempre, ao longo dos tempos, consideradas heresias e, no passado, perseguidas impiedosamente pela Igreja?
Sendo-me legítimo, enquanto espectador, lançar a dúvida, já não me caberá responder-lhe, enquanto "ateu confessional" que me considero. A quem de direito, por isso, a resposta.

direita, religião e liberdade

O debate sobre o conceito, ou os conceitos, de direita e das várias direitas dá sempre pano para mangas e azo a animadas discussões. Curiosamente, à esquerda, a discussão ideológica não é tão acesa ou, pelo menos, não transparece com tanta intensidade para o exterior, o que já é uma primeira lição que a direita deveria saber aproveitar e não aproveita.
Desta vez, o CAA e o RAF resolveram situar a linha de fronteira na questão religiosa, o que é um mau princípio político. Desde logo, porque a direita nunca expressou uma posição uniforme sobre a religião: existem direitas confessionais, mais ou menos laicas e mais ou menos clericais; como existem direitas não confessionais, pagãs e ateias.
No grupo das direitas confessionais ou que, de algum modo, fazem reverter alguns princípios da doutrina religiosa na sua doutrina política, encontramos uma tradição cristã nuclear, mas que é diferente de caso para caso. Assim, tivemos experiências autocráticas e ditatoriais influenciadas pela religião católica e pela doutrina cristã mais conservadora, como a de Charles Maurras, como sucedeu no salazarismo e no franquismo. Nas direitas democráticas encontramos, também, um pouco de tudo, sendo embora a tradição da democracia-cristã a mais influente, nomeadamente, em Itália e na Alemanha. Só que, provavelmente, o cristianismo de cada uma dessas duas experiências, ambas muito marcantes no pós-1945 e até à década de 90, não é o mesmo: em Itália, a influência católica é dominante, enquanto que na Alemanha a tradição luterana e protestante prevaleceu sempre na CDU. O que, em política, pode ter (e teve) consequências muito distintas.
Mas existem também direitas (embora, muitas vezes se possa discutir a propriedade do termo, esta é a sua qualificação mais corrente, pelo que a deveremos utilizar) que não reclamam a mais breve influência do cristianismo, mesmo até de qualquer forma de expressão religiosa: o nazismo foi uma manifestação contemporânea de paganismo anticristão e a «Nova Direita» de criação francesa ainda o é. Quando, há para aí uns bons vinte anos, se traduziu e editou em Portugal a obra de referência de Alain de Benoist, o «Vu de Droite», o editor português negociou com o autor a não inclusão do último capítulo, precisamente para evitar melindrar algumas consciências católicas mais sensíveis. Na tradição evoliana, que a Nova Direita segue de perto, o cristianismo, na melhor das hipóteses, não conta, ou é sujeito a uma interpretação esotérica que o descaracteriza totalmente se comparado com o cristianismo revelado. Para outros, ele foi mesmo um factor de degenerescência do Ocidente e da cultura europeia, à qual uma certa direita guarda suposta fidelidade.
Por outro lado, o facto das direitas serem ou não influenciadas pela religião, não garante a mesma posição sobre a natureza laica ou clerical do Estado. Salazar era maurrasiano e, contudo, deixou sempre o Cardeal Cerejeira a uma respeitável distância dos negócios públicos. Já Franco saiu do pretorianismo militar e, contudo, deixou à Igreja de Espanha uma margem de manobra muito mais ampla no Estado espanhol, de que a Opus Dei foi certamente a mais bem sucedida de todas as influências.
Por mim, que cada vez mais me considero essencialmente liberal e só (muito) acessoriamente de direita, julgo que a política deve ser neutra perante a religião. Se, por princípio, o liberalismo invoca a redução máxima do domínio público, a religião e as suas formas de estruturação social serão certamente matéria de natureza privada ou até mesmo íntima. Na vida privada, o que cada um, à esquerda ou à direita, faz com o credo em que acredita, a religião que segue, os cilícios que usa ou não, é matéria do mais absoluto foro íntimo, em relação à qual a política nada tem que, ou deve, dizer.
Não se ignora, porém, sob pena de ingenuidade, que as igrejas e os seus grupos internos possam constituir poderes reais e expressivos na sociedade, ao ponto de tentarem influenciar o domínio público. Também aqui, os termos do problema são invariavelmente mal colocados e denunciam a enorme atracção que a direita (até mesmo a que se considera liberal) tem pelo Estado. Nesta matéria, um liberal deverá «somente» pugnar por dois aspectos: a existência da livre concorrência entre religiões e igrejas, isto é, a garantia de um mercado religioso livre e incondicionado; e a não ingerência do Estado e dos poderes públicos na vida das igrejas. Já a influência destas sobre o Estado é, infelizmente, um mal inevitável. Como o é a influência dos clubes de futebol, dos media, das associações patronais e sindicais, isto é, de todo o tipo de interesses privados organizados, cuja satisfação dependa do governo e, sensu lato, do Estado. Mais uma vez, também aqui não podemos contrariar a humanidade, senão regressando aos postulados clássicos do liberalismo: essa influência será tanto maior, quanto maiores forem as funções e as competências do Estado. Razão para, muito liberalmente, as exigir diminutas, ou mesmo até inexistentes.

más notícias

Portugal vai receber, durante os próximos seis anos, mais de 19 mil milhões de euros em fundos comunitários, provenientes do próximo Quadro Comunitário de Apoio (2007-2013). No ranking dos 25 países comunitários, o nosso será o décimo mais beneficiado, tendo mesmo ultrapassado o Chipre, que entrou na União Europeia no último alargamento (2004). Dos quinze países que, até essa altura, integravam a União, Portugal foi, assim, o mais beneficiado. Em relação aos dez novos Estados, Portugal conseguiu superar um e não ficou a muita distância de alguns dos outros.
Todavia, esta não é, ao contrário do que legitimamente se poderia supor, uma boa notícia. É que os fundos comunitários não são exactamente uma forma de premiar a produtividade ou o sucesso económico dos Estados-membros da União, mas, pelo contrário, o reconhecimento do subdesenvolvimento dos beneficiados. No caso português, a situação é ainda mais grave, na medida em que não acabámos propriamente de entrar agora nas Comunidades. Já lá estamos desde 1986, já lhes extorquimos milhões e milhões em fundos que deveriam ter servido para suportar o nosso desenvolvimento e resultado está à vista: continuamos na «cauda» da Europa, ultrapassados pela Grécia, pelo Chipre e, muito em breve, pelos restantes nove países da quinta adesão. Não nos endireitámos até agora e não vai ser certamente com mais esta nova remessa de fundos, que é o reconhecimento explícito da nossa incompetência, que nos endireitaremos.
Daqui por seis anos, o mais provável é já termos sido ultrapassados pela quase totalidade dos novos membros da União. Roménia e Bulgária, membros de pleno direito a partir de 1 de Janeiro de 2007, incluídas.

justiça social

A esquerda reclamou sempre o monopólio dos bons sentimentos: da solidariedade, da justiça social, da igualdade e da liberdade. Durante décadas encostou a direita à defesa dos valores contrários e identificou-a com a desigualdade social, a opressão e a tirania, e com o «status quo» responsável pela miséria social e pelas injustiças do mundo. Aos quais, diga-se, a direita se deixou ?mansamente? encostar, levada pelo fascínio dos «grandes» carismas e da sua autoridade, que, invariavelmente, conduziam à autocracia e ao despotismo dos tiranos e tiranetes deste mundo. Durante todo esse tempo, ignorou a ideia de liberdade, à qual preferia o valor da ordem estabelecida pela vontade soberana de quem mandava. E esqueceu, também, a necessidade elementar de segurança e bem-estar que todos os seres humanos perseguem.
A resposta que deu mais distanciada do paradigma autoritário veio, apesar de tudo, da Igreja de Roma e das encíclicas sociais dos seus papas: de Leão XIII e da «Rerum novarum» (1891) à «Quadragesimo anno» (1931), de Pio XI, da «Populorum progressio» (1967) e da «Octagesima adveniens» (1971), de Paulo VI, à «Laborem exercens» (1981), à «Centesimus annus» (1981) e à «Sollicitudo rei socialis» (1987), de João Paulo II. Lidas fora do contexto evangélico, transpostas para o domínio da civitas e do político pela «democracia-cristã» europeia continental, foram fracas respostas, que não passavam de formas macaqueadas de socialismo cozinhado em lume brando, e que contribuíram para manter a mentalidade socialista que a direita gostava de ostentar. Se há já vinte anos eram respostas insuficientes, hoje são completamente inúteis e nocivas pelo prejuízo que lhe provocam.
A conversão da direita nacional ao liberalismo, que começa a parecer agora uma possibilidade, dá-se por causa da falência evidente do modelo social em que durante décadas a direita tolamente insistiu, já num momento em que a própria esquerda socialista, que está no governo, o está a abandonar. A convicção de que o modelo social estatista consome mais do que produz, e esgota as capacidades individuais e sociais num modelo que se justifica por si mesmo e não pelos fins que diz servir, foi sempre o ponto de partida do pensamento social do liberalismo. Ao contrário do que afirmam os seus detractores, o liberalismo não visa o lucro como fim em si mesmo (ainda que esse possa ser um fim tão legítimo como outro qualquer), mas como meio para a realização pessoal e, em consequência, da própria comunidade. Só numa sociedade onde o esforço individual é compensado, pode haver empenho e trabalho do qual resultem investimento e riqueza. Quando o liberalismo sugere que numa sociedade de livre mercado os recursos se distribuem naturalmente, está a afirmar que o jogo da oferta e da procura é a forma mais justa de fazer chegar a muitos o resultado do esforço produtivo de alguns e, por seu lado, permitir àqueles a possibilidade de também eles progredirem pelo esforço do seu trabalho e dos seus talentos. Nesta perspectiva, a via keynesiana, experimentada exaustivamente à esquerda e à direita, não funciona por muitas e várias razões, mas sobretudo porque, como já foi dito, não distribui convenientemente o que colecta, nem estimula o esforço e a progressão individuais. Logo, empobrece a comunidade, em vez de a enriquecer.
É evidente que sempre fica o problema, essencial, de resto, dos mais pobres, que, graças à justiça social da esquerda e da direita das últimas décadas são, como está à vista de todos, cada vez mais. Mas desiludam-se aqueles que julgam que mesmo um «Estado mínimo» poderá evitá-los. Desde logo, porque qualquer Estado cedo transforma o mínimo em máximo. Depois, porque só a riqueza pode gerar prosperidade e o Estado não gera nem uma coisa nem outra. Por fim, porque os indivíduos e as suas formas de organização podem, com mais facilidade, ser estimulados a criar apoio social directo, sem necessidade da «redistribuição» pública estatal. Esse, bem poderia ser, aliás, um custo a pagar para se transitar do modelo actual para um outro de mercado, que a economia privada não se importaria de pagar. Desde que, obviamente, o Estado se retirasse por completo dos extensos domínios que continua a ocupar, em vez de pretender, como agora, continuar e ampliar o espaço societário que ocupa, exigindo à economia privada que o sustente e, com aquilo que ela não tem, pague ainda a pobreza que ele criou.

ordem no caos

Afinal, o meu último «post» está completamente desactualizado e não faz qualquer sentido: o «Público», num artigo hoje publicado («link» indisponível), assegura que existem escolas de saúde a mais em Portugal e que, no ano 2010, mais de 50% dos profissionais da área estarão no desemprego.O fascínio que sempre tive pela astrologia económica só é suplantado pela admiração que tenho pelos astrólogos. Neste caso, os srs. Jorge Conde, responsável da Escola Superior de Tecnologia da Saúde do Instituto Politécnico de Coimbra, e o sr. Almerindo Rego, presidente do Sindicato das Ciências e Tecnologias da Saúde. Ambos devidamente sustentados no célebre parecer do Prof. Amaral (ver «post» anterior), propõem a criação urgente de «um grupo de trabalho, da responsabilidade do Parlamento e que integre os responsáveis dos ministérios da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior» para pôr ordem no caótico sector. Por outras palavras: para reduzir ainda mais a oferta e impedir que ela se vire para outras especialidades. Uma sugestão construtiva: não se limitem a «pôr na ordem» o sector do ensino da saúde em Portugal. Aproveitem o balanço, os estudos realizados e o parecer do Prof. Amaral (que conviria emoldurar e pendurar à porta do Ministério), e invistam sobre as Universidades espanholas, o Tribunal de Justiça da União Europeia e, já agora, as Instituições comunitárias em geral (escusam de visitar o Parlamento Europeu).Está visto que o ensino da saúde é, em Portugal, um enorme negócio, como bem afirmam as citadas personagens. É pena que não esclareçam exactamente para quem.

«dr. amaral, i presume?»

No mesmo país e no mesmo tempo em que o Ministério do Ensino Superior continua a impedir a abertura de novos cursos de Medicina, fundamentando-se num parecer do Prof. Alberto Amaral segundo o qual temos médicos em excesso, acabam de realizar provas de admissão às Faculdades de Medicina espanholas cerca de mil candidatos portugueses.
A história parece um pouco confusa e, de facto, é.
Portugal tem cinco Faculdades de Medicina que, segundo o Prof. Amaral, um sábio reciclado do PREC a quem o Ministério encomenda uns pareceres quando quer inviabilizar alguma coisa, formam médicos mais do que suficientes para as necessidades do nosso mercado. Por outro lado, a Espanha, onde há vinte e oito dessas mesmas escolas, aproveitando a imensa procura indígena e a jurisprudência e a legislação comunitárias, vêm aqui recrutar alunos que, uma vez concluídos os seus estudos por lá, regressam à pátria habilitados a exercer a mesma profissão que os impediram de aprender aqui.
Concluindo, alguma coisa não está aqui a bater certo: ou o Prof. Amaral e o Ministério não são deste tempo, ou os espanhóis estão a abusar da nossa hospitalidade, ou somos atrasados mentais e não conseguimos ensinar mais e melhor do que os nossos vizinhos, ou anda por aí alguém a fazer-nos ainda mais parvos do que~somos. Tudo ao mesmo tempo é que não dá.

05 junho 2006

um critério liberal

Se nalgum país da Europa o exercício do poder governativo assume uma feição particularmente odiosa, será seguramente em França. Sem pretender ser exaustivo e referir uma quase inesgotável lista de salafrários que mandaram naquele país e naquelas pobres gentes, lembro Richelieu, Luís XIV, Robespierre, Marat, Danton, Bonaparte, Pétain, de Gaulle, Mitterrand e Chirac. É um rol capaz de fazer perder o sono ao mais intrépido dos patifes e, se o quiséssemos continuar, dificilmente teria fim. Depois, há as expressões da arrogância, da jactância, da insolência do poder soberano francês: a pessoalização do absolutismo estatista em todas estas personagens seja no «L'État, c'est moi» de Luís XIV, na «virtude» assassina do Comité de Salvação Pública, nas invasões «libertadoras» de Bonaparte, na majestática «La grandeur de la France» de de Gaulle. Este último, de resto, legou ao seu país e aos pobres franceses um pérfido sistema de governo, concebido para perpetuar no poder autocratas e tiranetes da sua índole. A V República e a Constituição de 1958 que a instituiu, entregou ao chefe de Estado um poder quase ilimitado por um período de tempo que será sempre em média de catorze anos consecutivos. Imagina-se o que não poderá fazer alguém - mais ou menos escrupuloso - com um tão imenso poder durante um tão longo período de tempo. Basta olhar para as últimas décadas da história francesa para perceber. De Gaulle saiu de «alcatrão e penas», Mitterrand saiu diminuído sob a ameaça de vários escândalos, que só a sua morte acabaria por conter. E, agora, Chirac é notícia diária dos jornais pelas piores razões, a última das quais este sórdido escândalo Clearstream, que em qualquer sistema presidencialista democrático e saudável, o teria, há muito, arredado do poder.
É sabido, desde sempre, que todo o poder corrompe e que o poder total corrompe totalmente. De Gaulle criou em França um sistema que permite a pior expressão humana do exercício do poder político. Por mim, desde há muito considero que um bom critério para distinguir a direita liberal da «outra», é traçar uma linha separadora entre os admiradores e os críticos do velho general. E cada vez mais me convenço da bondade e da utilidade do critério.

utopia liberal vs. bom senso estatista

Que o liberalismo é uma impraticável utopia, já ninguém tem dúvidas. Que insistir na desregulação da vida social, na liberdade individual, na preferência pelo mercado e na livre composição dos interesses individuais e sociais, na restituição da propriedade aos cidadãos, ilegitimamente limitados no pleno gozo do que é seu por herança ou por rendimento de trabalho, na incapacidade do Estado se substituir ao indivíduo, na inutilidade da esmagadora maioria dos serviços públicos, é uma assustadora falta de bom senso e, no limite, de honestidade intelectual. Se alguma vez gente desta chegasse a conquistar um módico de poder público, a terra tremeria e os oceanos e os mares entrariam em ciclópica convulsão.
Em contrapartida, no estatismo, em qualquer das suas inúmeras e ricas modalidades, continua a residir a virtude. Garantir, como fazem as nossas Constituições ocidentais do século XX, que todos temos direito a cuidados de saúde gratuitos, a uma habitação condigna, à educação sem a pagarmos, a uma justiça rápida e segura, a uma administração pública competente e célere, ao acesso diversificado e plural a bens culturais, ao ambiente, ao pleno emprego, ao gozo de uma reforma digna e em tempo útil para ser usufruída, tudo isto são propostas sérias, vindas de gente sensata. Como, de resto, as últimas décadas bem o têm demonstrado.

uma análise curiosa

Uma revista deste último fim-de-semana (penso que a «Única») publicou um interessante artigo sobre a Máfia italiana e um dos seus mais importantes e carismáticos «capos» de sempre, Bernardo Provenzano. «O tractor», nome pelo qual era conhecido dada a solidez e implacabilidade da sua liderança, sucedera a Totó Rina, a «besta», epíteto que não carece de explicação. Enquanto dirigiu ao mais alto nível os destinos da Máfia italiana, Provenzano preferiu a diplomacia à guerra, evitando o confronto directo com os poderes públicos, ao contrário do seu antecessor. Foi preso numa casa de um pastor em Corleone, na Sicília, um dos muitos esconderijos percorridos ao longo de mais de quarenta anos de fuga à justiça. Este tão prolongado período de tempo, durante o qual continuou sempre em Itália, provocou a admiração do autor do artigo, que muito sensatamente a atribui a cumplicidades entre a Máfia e os poderes públicos, sem as quais, obviamente, ela não teria sido possível.

Todavia, não espanta que seja assim.
Durante décadas e décadas a fio (séculos?) a Itália primou pela ausência de um poder legal que garantisse aos cidadãos os valores essenciais do contrato social: segurança, justiça, em suma, propriedade. Na falta desse princípio de representatividade, o sul do país desenvolveu uma instituição ? a Máfia ? que assegurou aos cidadãos essas mesmas funções de justiça, ordem pública e propriedade, em troca do pagamento compulsivo de taxas. «La honorata societa», a sociedade, a organização das pessoas honradas, das pessoas «de bem», como a Máfia italiana era conhecida, manteve sob a sua administração uma larga parcela do território da península itálica, na qual mandava sem restrições. Quando o território se unifica em 1861, com excepção de Roma e Venez, os quadros do novo Estado e da organização sobrepuseram-se com naturalidade. Mesmo até porque a legitimidade, as funções e os métodos utilizados pelas duas formas de organização do poder não eram tão diferentes quanto isso. Não foi por acaso que os Aliados entraram na Itália pela Sicília, em Julho de 1943, ocupando-a no breve período de um mês sob a direcção estratégica dos comandos da Máfia. Que, aliás, os ajudaria a tomar conta do resto do país, utilizando os seus canais clandestinos. A organização aproveitara, assim, para se ver livre de um Estado unitário, poderoso e forte chefiado por Mussolini, que nunca lhe dera tréguas, e voltar aos «negócios». Depois disso, com a consolidação do Estado moderno italiano, a Máfia deixou de ter razão para existir como estrutura separada, e passou assumidamente a ser uma organização criminosa, única maneira de manter um poder que lhe fora retirado, ainda que muitas vezes apenas na aparência. O crime era, de resto, uma actividade bem conhecida da sua ramificação norte-americana, que encontrara na sua chegada aos EUA um Estado forte e omnipresente, pelo que facilmente se adaptou a essa nova missão. Muitas vezes, assinale-se, em estreitíssima colaboração funcional e pessoal com a estrutura política legal.

E como se desenvolveu, depois disso, o Estado italiano? Mais ou menos como todos os outros. Aqui fica uma breve passagem da «Ethics of Liberty», de Murray Rothbard, para nos ajudar a compreender melhor a natureza do Estado contemporâneo e do «contrato» social que nos «propõe»: «Há um poder de decisivo alcance inerente à própria natureza do Estado. Todas as pessoas e grupos sociais (com excepção de alguns conhecidos e esporádicos casos de ladrões e assaltantes de bancos) obtêm as suas rendas por procedimentos voluntários: ou vendendo bens e serviços ao público, ou por donativos oferecidos por livre vontade (por exemplo, por filiação num clube ou numa associação, ou por herança). Só o Estado consegue as suas receitas mediante coação, ameaçando com graves castigos aos que se neguem a entregar a sua parte. A esta coação chama «impostos», embora em épocas de linguagem menos refinada fosse conhecida pelo expressivo nome de «tributos». A contribuição é, pura e simplesmente, um roubo, um roubo em grande e colossal escala, que apenas os maiores e conhecidos delinquentes podem sonhar em igualar».
É uma análise curiosa, não é?